Bacafá

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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Contos de quinta: O livro - parte final.

O livro - parte final. (Parte I. Parte II).

Peguei o aparelho, sentado no chão, fiquei vendo seu nome piscar na tela. Insistentemente. Ela tentou mais duas vezes. Será que se arrependeu ou estaria apenas preocupada comigo? Ou simplesmente estaria sozinha e lembrou-se de mim por pura solidão? Não interessava mais. Não atendi. Ela desistiu. Mas fiquei pensando nos nossos bons momentos. Na risada dela, na implicância que ela tinha com algumas coisas minhas, alguns jeitos meus. No quanto gostávamos de ficar abraçados vendo filmes. Mas a imagem dela estava turva em minhas lembranças; mesclava-se com a de Isa. O corpo de Isa e as lembranças da minha ex.

Voltei ao livro. Absolutamente indeciso se deveria ou não continuar a lê-lo. Eu estava confuso demais. Não entendia o que estava acontecendo. Os meus dilemas e pensamentos naquelas páginas. Os meus sucessos, as minhas frustrações, os meus fracassos. Vidas profissional e pessoal tão distintas entre si e tão acertadamente detalhadas ali.

Os anos foram passando na narrativa. No ritmo da minha vida, com os fatos da minha vida. E agora com um diferencial. Com os pensamentos das pessoas sobre o protagonista. Ou seria sobre mim? Dos amigos, dos parentes, dos sócios, dos empregados, dos inimigos, das namoradas. Meus.

Não imaginava que poderia ser tão arrogante, petulante e babaca na visão de tanta gente. Não imaginava que alimentava tanta inveja entre pessoas tão próximas a mim. E, por outro lado, que poderia ter o carinho e o respeito de outras que eu sequer cogitaria. Será que tudo o que está escrito reflete a realidade? Será que, como tudo o que li até agora, é a verdade da minha vida e eu sempre julguei errado as pessoas? Que confiei em que não era tão confiável e não acreditei em quem só queria meu bem?

De repente a vida, a minha vida, passou a não fazer mais sentido. Tudo o que construí em matéria de relacionamento era o oposto, o contrário. Como poderia isso? Como poderia eu viver tanto tempo sem perceber esse vazio? Como esse vazio se tornou tão grande e tão invisível ao mesmo tempo? Como pude estar tão distante das pessoas ao meu redor a ponto de não perceber seus verdadeiros interesses? Nem depois do acidente consegui distinguir as intenções de quem me cercava. Na minha prepotência e autossuficiência em achar que estava mudando para melhor, deixei de perceber tudo justamente por pensar o contrário. Por achar que havia passado a perceber tudo. Estava centralizado no meu egoísmo, cercado por risadas falsas e sentimentos duvidosos.

Despertei do meu devaneio com um beijo suave na nuca. Isa estava vestindo apenas uma camisa de botões, listrada, minha. Linda e ainda perfumada. Deu a volta no sofá e deitou sua cabeça nas minhas pernas, esticando-se no móvel. Ficou quieta, perguntando-me com seus olhos sobre o que eu pensava. Acarinhei seu rosto e seus cabelos. E lhe respondi, também em pensamento, que não sabia nada da vida. Nem sequer da minha vida. Ela fechou os olhos, em leve sono.

A próxima página me deu um frio na espinha. Uma reunião mal-sucedida numa tarde chuvosa em que eu havia resolvido ir trabalhar a pé. A sexta-feira que eu encontrei o livro numa poça de água no canto da rua. A lanchonete, o banheiro, a garçonete. Isabel. “Seu nome é Isabel?”. Isa balbuciou que sim, e continuou dormindo. Eu chegando em casa, deitando no sofá, dormindo com o livro nas mãos, a ligação para minha ex, Isa chegando na minha casa, a ligação da minha ex, os beijos de Isa. Minha boca seca, minha cabeça a mil, o coração acelerando. Tudo ali, naquelas páginas. Ela deitada nas minhas pernas, dormindo. Meu coração disparou. Virei a página, a seguinte, todas, desesperado. Uma a uma até o fim. Todas em branco.

Isa acordou de sobressalto. Sem entender o que acontecia, tirou o livro das minhas mãos, jogou-o no outro sofá, e começou a me beijar.

5 comentários:

Anônimo disse...

Adorei o final............ e o fato de não ter atendido a ex-namorada me surpreendeu, achei que ia atender!
Um bom sinal... sinal de que você me escuta mais do que eu imaginava!! rs

Rose disse...

Esse final deixou aquele suspense no ar. Foi bastante inteligente, adorei.Gostei especialmente da situação com a ex, ficou uma dúvida do tipo: e se ele tivesse atendido o celular?

Rose disse...

Outra coisinha: o novo visual do BACAFÁ ficou muito moderninho!Até a próxima.

jean mafra em minúsculas disse...

parabéns, raphael, ducaralho o conto!

conseguir nos prender com uma ficção por escrito nessas indas e vindas de internet é admirável!

Raphael Rocha Lopes disse...

Anônima, tivemos pensamentos parecidos. Escreva um conto para postarmos aqui.

Rose, obrigado pelo apoio. E também fiquei na dúvida. O que teria acontecido se ele tivesse atendido a ligação dela?

Jean, amigo, obrigado pelas palavras e, como dizem por aí, é exagero seu, mas pode espalhar, hehe.