Bacafá

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sábado, 5 de junho de 2010

Carlos Drummond de Andrade e Paulo Autran.

Dois mestres e uma só poesia. Campo de flores.
Vale a pena acompanhar lendo.



Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus- ou foi talvez o Diabo- deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

Um comentário:

Anônimo disse...

Amigo Raphael!

Drummond foi, desde que comecei a me interessar por literatura, ainda na adolescência, meu poeta preferido. Guardo ainda seus livros, pertubado por um empréstimo à pessoa errada de um deles, que até hoje não me devolveu, se fazendo de surda e muda. Levou ainda um Fernando Pessoa,um Dostoiévski e um Mário Quintana.

Este poema que você postou hoje, tem tudo à ver, certamente, com o seu momento pessoal e traduz uma felicidade que seria mesmo necessário pegar "palavras alheias" para traduzi-lo.

Compreendo ainda, porque estou sendo agraciado com semelhante dádiva, daquelas que também necessitam de "palavras emprestadas" para serem traduzidas, ao menos tentar, já que o "indizível não se diz. Se sente e se vive".

Abraços a você e Janaína. Felicidades, sempre!