Bacafá

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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Contos de quinta (versão verão): A tenda.

Como já é conhecido dos frequentadores destas plagas, quinta-feira costumava rolar um "Contos de quinta" pra divertir ou chatear os leitores. Alguns fizeram sucesso, outros foram muito mal falados, hehe. Abaixo, para quem não leu ou quer lembrar, a ligação para a relação dos contos. Na sequência, o primeiro da temporada. Como expliquei na terça, serão contos leves, sobre verão, praia, até eu pegar o jeito novamente. Grande abraço, boa leitura e boa sorte!!

Podem ler clicando aqui (a relação grande) e aqui (o último depois da relação).

A tenda.

Sábado de sol. Muito sol. O cidadão acorda relativamente cedo e vai com sua mulher para a praia. Duas quadras separam sua casa da areia. Como chegou antes da muvuca, escolhe um bom lugar, e arma seu guarda-sol. Arruma a cadeira da mulher, estende a toalha para ela torrar um pouquinho. Apesar do céu limpo, sem nuvens, de um belíssimo azul, ainda não está terrivelmente quente. Horário de verão tem suas vantagens.

Senta na sua cadeira, abre seu livro de autoajuda e afunda-se em regras de salvação própria. Entre um mandamento e outro, dá uma espiada sobre seus óculos nas bundas que passam caminhando. Disfarçadamente, claro, para a esposa não perceber.

O tempo passa e vão chegando casais, famílias, turmas. O silêncio inicial, rebatido apenas pelas poucas ondas, se desfaz por completo. Não se ouvem mais as ondas, inclusive. Um porcalhão aqui, outro ali. Uma criança reinenta aqui, outra ranhenta lá. E assim caminha a humanidade praiana. Todos dentro da civilidade possível. Claro, sempre passa um molequinho correndo e levantando aquela agradável areia sobre as mulheres ao sol. Invariável, assim como o é o adolescente que passa na beirinha do mar chutando a água para acertar a irmã e acerta todo mundo, menos a irmã.

A convivência tranquila e pacífica entre as famílias e seus guarda-sóis. Espaço razoável para todos, afinal. Uma água de coco para hidratar, um picolé de manga para refrescar. Claro, tem o chatinho que passa com o seu celular pendurado sabe-se lá onde, fazendo todo mundo ouvir o que ninguém quer.

Tudo corria normalmente quando, porém, chegou uma família. Uma família grande. Uma família de pai, mãe, filha, namorado da filha, filho, esposa do filho, ou vice-versa, uma netinha de uns dois anos e outro de uns cinco, tia e mais alguém não identificável. Uma família e piscininha, baldinhos, pazinhas, brinquedos diversos, bola, bolsa de neném (aquelas que a mãe carrega com todos os apetrechos dos pequenos), um cooler e um isopor. Uma família e sete cadeiras, cinco toalhas, não se sabe quantos bonés e chapéus e alguns tubos de bronzeador. Uma família e uma tenda, destas que são montadas para proteger a tropa toda do sol, dessas que só tem a parte de cima e as quatro pernas de sustentação. Branca com detalhes cinza.

O cidadão olha para a esposa que devolve o olhar. Alojou-se, a família, bem ao lado do casal. Bem na frente de outra família que tinha acesso para o mar. Não que fosse o último lugar da praia. Não. Havia muita areia para a família da tenda se apoderar. Mas tinha que ser ali. Todo mundo fez cara feia. Menos a família, que estava fazendo força para montar o barraco.

O cidadão baixa o livro e discretamente comenta com a esposa:

- Gente sem noção, hein? Tanto lugar pra se acomodar e tem que ser logo aqui. Na frente daquela família. Agora os pobres coitados vão ter que ficar contornando.
- Sem comentários – responde a mulher, concordando com o marido.
- Onde vai parar esse mundo? Cadê o respeito? Será que não se tocam? Não conseguem ver que estão atrapalhando outras pessoas?
- E ainda por cima, ficam aí, falando alto. Ninguém precisa saber que os vizinhos deles brigam, que a tia fulana tomou um porre na virada, que o cachorro fez xixi no pé da visita...
- Esse povo tá mesmo sem educação. É cada um por si e o resto que se exploda. Que se exploda. Até tirou parte do nosso sol, olha só!
- E tá esquentando esse sol, né, amor?
- Vixe, se está...

E a praia continua. O sol vai fazendo seu caminho no céu. As crianças continuam correndo e gritando. Mais um picolé, uma água gelada, um capítulo do livro, uma marquinha de biquíni...

De repente os olhares do patriarca da família da barraca e do cidadão se cruzam. O cidadão faz cara de poucos amigos. O senhor da tenda sorri e oferece uma cerveja. O cidadão recusa, que é isso, não precisa, não. E engole a própria saliva, imaginando o quanto deve estar gelada e gostosa aquela loira. O senhor insiste, argumenta mais um pouco e o cidadão acaba aceitando, pois, afinal, fica chato recusar, assim, sem por que, toda essa solicitude.

- Pegue aqui, vizinho, está gelada esta cerveja. É das boas, importada. Você vai gostar. Sente-se aqui embaixo conosco; deve estar muito quente aí fora. Aproveita. Sinta a brisa aqui na sombra. O quadrado é grande, aprochegue-se, não fique encabulado. Sua esposa também não quer vir? Mais uma cerveja? Pegue aí no cooler, fique bem à vontade.

Os minutos vão passando, o cidadão, inicialmente desconfortável, passa a curtir a mordomia, seu novo amigo, a família dele, as cervejas dele. Lá pelas tantas, depois da décima latinha:

- Bacana essa sua tenda, hein? Sabe que eu tava pensando em comprar uma. Igualzinha essa sua aqui. A gente fica com um espaço bom na praia, né? Consegue marcar o território, hehe. A mulher, se quiser pegar sol, deita um pouco mais pra fora, a cerveja fica na sombra, e é mais difícil a molecada fica jogando areia na gente quando passa correndo. Muito boa essa barraca. Passa mais uma cerveja aí, meu amigo...

E assim caminha a humanidade...

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