Bacafá

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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Primeiramente

Tempos atrás discutia com minha filha sobre o uso do advérbio primeiramente, inclusive se existia ou
não. Na realidade, nunca fui muito simpático ao uso dessa palavra, e sempre que surgia no pensamento, eu a evitava, fosse no papel, fosse no verbal. Em verdade, jamais havia ido pesquisar mais a fundo o assunto, ficando com aquela sensação de que ela não enobrecia o mundo erudito da língua portuguesa. E o assunto voltou à tona para mim lendo TCCs nestas últimas semanas. Estava lá um "primeiramente", belo e formoso (ou não tão belo e formoso na minha visão).

Para não cometer nenhuma injustiça, fui ao encalço do dito advérbio. De todas as fontes procuradas, eu me diverti mais com a explicação abaixo, do site Sua Língua, de Cláudio Moreno:

Não acredito em fantasma, bruxa, alma penada ou horóscopo — mas mesmo sendo o cético incorrigível que sou, não poderia negar a existência dos sacis, por exemplo, se eu os visse todos os dias saltitando pela rua, dando entrevista na TV ou esperando sentados (sem cruzar a perna, é claro) na fila do Dr. Scholl. Aos que me perguntassem, então, eu teria de admitir, envergonhado: “Saci existe, sim!”, pois essa é a lógica do jogo: se me incluo entre aqueles que precisam ver para crer, não tenho outro remédio senão acreditar naquilo que estou vendo.

Pois vários leitores já me escreveram sobre gente que anda por aí questionando a existência da palavra primeiramente. As razões alegadas são tiradas das unhas dos pés: “Não existe porque primeiro é um numeral e não pode formar advérbio”; “Se existisse, teríamos também segundamente, terceiramente“, e outras coisas assim, formuladas naquele estilo onipotente em que jamais se ouve um “acho”, um “parece-me”, um “poderíamos até pensar”, expressões que caracterizam a dúvida inteligente.

Antes de responder, faço sempre uma visita ao Google, nosso moderno oráculo de Delfos, agradecendo aos deuses da internet esta fantástica possibilidade de obter dados instantâneos sobre os hábitos lingüísticos do Brasil moderno. O que ele nos diz? Que o vocábulo primeiramente alcança muito mais de onze milhões de ocorrências! Um número de oito dígitos! É uma cifra gigantesca! Mas como é que alguém poderia negar a existência dos sacis, depois de encontrar o registro de onze milhões desses irrequietos serezinhos? Haveria alguém com a coragem de olhar para um vocábulo que aparece todo dia no rádio, no jornal, na TV, nos nossos próprios textos, na nossa conversa com o vizinho, e dizer-lhe, nas barbas, que ele não existe? Suspeitando de um mal-entendido — pois conheço alguns desses autores e sei que, apesar de atrasados e autoritários, não cometeriam a imprudência de negar algo que lhes entra pelos olhos e ouvidos todos os dias —, resignei-me, em nome da ciência, a ler o que eles tinham escrito sobre este termo. Bingo! Estava lá! O problema são os vários sentidos dados ao verbo existir!

Quando o cristão encontra uma palavra que nunca tinha visto, a pergunta “Isso existe” deve ser tomada ao pé da letra: “Existe papibaquígrafo?” — “Não; é uma brincadeira, um trava-línguas, como um ninho de mafagafos“. “E vápido, existe?” — “Sim; significa sem sabor, sem gosto”. No caso de primeiramente, contudo, palavra que todos nós conhecemos, quem pergunta “Isso existe?” se refere especificamente à aceitabilidade do termo, o que deve ser traduzido como “Posso usar esta palavra num texto bem-comportado? Posso incluí-la numa redação, num relatórios, num discurso de formatura?”. Isso nos leva a outra questão: sendo a língua culta uma espécie de clube selecionado, o que é necessário para que uma palavra faça parte da lista? Embora atuem aqui alguns fatores até hoje desconhecidos, sabemos que é decisiva a frequência com que a palavra é usada na literatura, a utilidade que ela tem para os usuários e a amplitude de seu emprego (ela perde pontos se estiver restrita a grupo fechados, ou a pequenos rincões do país, ou a épocas limitadas). Em todos esses quesitos, o nosso primeiramente passa com distinção. Encontramos registros de seu emprego desde o século 13; ele aparece dezenas de vezes na obra de Gil Vicente, Bernardes, Vieira, Herculano, Camilo, Garret, Eça de Queirós, Rui Barbosa, Machado de Assis, Gilberto Freyre, Guimarães Rosa, Saramago e muitos outros autores conhecidos e respeitados. Com todos esses padrinhos, não dá para dizer que ele “não existe”…

Como se não bastasse, é um advérbio legítimo, formado, como todos os outros, pelo acréscimo do elemento – mente ao adjetivo primeiro (que aqui não é numeral, como pensam os seus adversários) — o que, aliás, permitiu que Darcy Ribeiro utilizasse o superlativo que existe potencialmente em qualquer adjetivo: “contribuiu para o planejamento e concretização da UNB, primeirissimamente, Anísio Teixeira”. Seguindo o mesmo modelo formaram-se, como seria de esperar, segundamente, terceiramente, quartamente, decimamente, mas estas formas não caíram no nosso gosto, ficando limitadas a alguns poucos textos do português antigo. Ainda hoje se encontra, aqui e ali, um milesimamente (Mia Couto), ou se fala em “dispositivos baseados em moléculas, milionesimamente menores do que um milímetro”, mas isso é uma ninharia se pensarmos nos onze milhões de ocorrências de primeiramente, palavra viva, vivíssima, que já estava lá, serena, no primeiro texto que foi escrito neste país: “Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele”. O autor é Caminha. Pero Vaz de Caminha. Acho que isso encerra a discussão.

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