Bacafá

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sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O estranho caso do besouro gigante.

Tirando do baú virtual, um dos Contos de Quinta. Se não o mais, um dos mais surreais ou extraordinários (no sentido de fora do comum mesmo) do repertório. Originalmente foi publicado em duas partes, em duas quintas seguidas. Hoje vai tudo de uma vez só. Ao final, um pouco de música, com Flight of the bumblebee ou, simplesmente, O vôo do besouro, em duas versões. A primeira, de Al Hirt, no filme Kill Bill, e a segunda da London Cello Orchestra.

O estranho caso do besouro gigante.

Certa noite, caminhava o cidadão pelas ruas vazias, escuras e quentes da silenciosa cidade. Prédios margeando seus passos, casas com as luzes acesas algumas, apagadas outras. Nem os cães ladravam. O estranho silêncio acompanhava o andar do cidadão. Apenas o barulho dos seus próprios sapatos, já gastos, embora limpos. O mesmo não se poderia falar das ruas. Aqui e ali as lâmpadas dos postes piscavam. Outras estavam completamente apagadas, provavelmente queimadas. As restantes emitindo uma luz fraca, amarelada. Nestas, muitos insetos fazendo suas danças e seus malabarismos no entorno.

O cidadão apenas andava, sem destino. Pensava na vida. Às vezes conseguia pensar em nada. Limpava a mente. Entretanto, algo chamou sua atenção para a próxima esquina. Caminhou lentamente até lá, dobrou a esquina e ficou olhando. Surpreso. Analisou vagarosamente, detalhadamente, a estranha criatura a sua frente.

Parecia um monstro. Um monstruoso besouro, para ser mais exato. Seis patas enormes e peludas, todo preto, com uns riscos vermelhos. Ficou atônito na frente do inseto. Mudo, quase sem respirar. O besouro, por sua vez, concentrou-se no cidadão. Olhava, também. Praticamente parado, também. Apenas mexendo as antenas. O bicho deu um passo lento. O cidadão recuou. Sem falar nada. Não porque não queria, mas simplesmente porque não conseguia. Teve a intenção de gritar, mas não conseguiu. Fechou os olhos.

Abriu somente quando sentiu um bafo em seu rosto. O besouro estava praticamente enconstado em seu nariz. O cidadão não sabia se se mantinha congelado ou se saía correndo. Por medo ficou parado mesmo. O monstro resolveu cutucar o cidadão. De leve, sem machucar, como se estivesse dando sinais de boas intenções. O cidadão respirava profunda e vagarosamente. As gotas de suor já escorriam por sua testa. Suor frio que igualmente lhe molhavam as costas.

Deu um passo para trás. O inseto se assustou e deu uns dois ou três passos também para trás, levantando-se um pouco, o que o fez parecer ainda mais gigante do que já era. O cidadão fechou os olhos e se franziu, esperando o pior.

Durante alguns segundos nenhum dos dois se mexeu. Enquanto o menor continuava paralisado, o inseto foi se reaproximando. Encostou novamente no cidadão, como se quisesse mostrar alguma coisa. Como se quisesse se comunicar. Foi o empurrando devagar. Saíram do beco onde estavam e foram caminhando. No inicio o cidadão estava andando de costas. Depois andaram lado a lado.

Quando o cidadão se deu conta já estava em frente a sua casa. Teve uma estranha sensação de que se comunicava mentalmente com o bizarro bicho. Abriu o portão rangente e entrou na frente. O inseto passou um pouco pelo espaço aberto, um pouco por cima do pequeno muro de tijolos à vista.

Ao subir os quatro degraus que davam para a varanda de sua casa, o cidadão se virou e ficou olhando o monstro. Voltou os olhos para a porta e novamente para o bicho. Calculou mentalmente o tamanho do inseto e imaginou se passaria pela porta. Entrou em casa, acendeu as luzes e ficou esperando. O besouro gigante foi se aproximando aos poucos, espremeu-se pela porta e entrou, derrubando alguns enfeites que estavam na mesa na parede ao lado da porta.

Depois de olhar para os cacos, o bicho se acomodou em um dos sofás da sala. O maior. O cidadão pegou uma cerveja na cozinha e voltou pra sala, sentando em uma poltrona de frente para o esquisito bicho em sua esquisita posição.

- Precisamos de um nome pra você – falou em voz moderada.

O inseto continuou olhando para o cidadão bebendo cerveja.

- Mas... que nome? Rubro-negro? Gigante? Zé? Não, não... não combinam com você. Você é muito bizarro... É isso, hehe... acho que é isso mesmo. Bizarro. Seu nome, daqui em diante, é Bizarro.

O cidadão pegou uma tigela de plástico, encheu de cerveja e deu para o Bizarro beber, enquanto entornava a sua segunda garrafa. Ligou a televisão e ficaram vendo aquelas séries americanas antigas enlatadas. Parecia que o besouro ria junto com o cidadão.

No outro dia, ao tempo que o cidadão cortava a grama do jardim de sua casa, Bizarro cuidava, do seu jeito, dos canteiros e dos outros insetos. Na hora do almoço assaram carne na churrasqueira nos fundos da casa e beberam mais cerveja. Falavam pouco entre si, mas havia uma estranha comunicação telepática.

No final do dia o quintal estava perfeito. Jogaram um pouco de futebol no gramado cortado. Depois de mais cerveja foram dormir. O monstro dormia na rua, numa tenda improvisada pelos dois. Dentro de casa já havia quebrado muitas peças e louças.

Quando acordou, o cidadão sentiu um cheiro estranho. Sua cama toda molhada. As paredes manchadas, respingadas. Tudo vermelho. O lençol ensopado no chão, em direção à porta. Uma dor lancinante. Olhou para baixo e não viu suas pernas. Apenas dois tocos ensangüentados e ainda sangrando, com os ossos despedaçados e a carne triturada. Só conseguiu gritar desesperadamente.


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